Minha mãe fuma

Minha mãe fuma. E desconfio que seu vício não seja apenas no sabor da nicotina.

O cigarro, desde os seus 15 anos, é uma extensão fumegante dos seus dedos. Minha mãe gosta de fazer as unhas; pinta de rosa, café ou vermelho Ivete. Mas de quê adianta, se no fim das contas a fumaça espiralada e cinzenta é sempre a vírgula dos seus dedos?

Minha mãe não fuma dentro de casa, em respeito ao restante da família que é livre do vício. Quando sente que precisa fumar, a mulher se retira para a sacada do apartamento e senta-se à pequena mesa. A mesa é o santuário de seu vício. Só serve para isso: para os cigarros da mãe. A mesa é povoada de xícaras com restos de café puro e existe um cinzeiro apinhado de tocos de cigarro. Todos eles tem o filtro lambuzado de batom rosa choque. Sim, minha mãe passa batom para fumar.

Desde pequena, assisto ao espetáculo que é a minha mãe fumando. Existe toda uma rotina. Ela retira-se para a sacada, senta-se à mesa e encara a esquina do mundo por alguns momentos. Com os olhos castanhos bem sérios e sobrancelhas franzidas, conversa um pouco com o horizonte. Nunca perguntei para ela o conteúdo desse papo, gosto de dar privacidade. Mas, pelo tom de seu rosto, imagino que seja um papo bem cabreiro.

Então, ela termina a conversa com violência. Como quem bate a porta na cara do interlocutor. A mãe puxa o maço do bolso do roupão, pinça um cigarro e o encaixa entre os lábios. Do outro bolso do roupão, tira um isqueiro e acende o cigarro. Enquanto o acende, encara a força do fogo com as pálpebras semicerradas. Dá a primeira tragada com ansiedade e raiva. Os lábios finos, coloridos de rosa, ganham um sorriso vencido.

Com o cigarro equilibrado entre os dedos indicador e médio, a mão próxima ao rosto, a mãe volta a olhar para o infinito do planeta e parece fazer perguntas. Tenho a impressão de enxergar os pontos de interrogação transbordando, castanhos, de seus olhos. Eles dançam pelas rugas ao redor dos olhos da mulher.

Com o maxilar apertado e narinas dilatadas, minha mãe testa a fé no ser humano, no mundo e em toda a história da sua vida. Não é a mulher que segura o cigarro; é o cigarro que segura a minha mãe pela alma. Com o espírito pendurado em um pau de arara, os gritos internos da mulher estouram sua pele em rugas, marcas de expressão e manchas que desenham pouco a pouco o mapa da tristeza em seu rosto.

Todo cigarro carrega seis minutos de tortura para essa mulher. Enquanto a nicotina navega pelas suas veias, minha mãe luta contra os fracassos de seu caminho; se digladia com uma doença que a faz ouvir vozes horríveis toda manhã; lembra-se das cartas guardadas com rancor dentro de uma bíblia surrada e empoeirada.

Todo cigarro é um abismo em que a mãe chega pertinho e olha. De acordo com Nietzsche, sem dúvidas, o abismo olha de volta para ela. Faz 35 anos que o abismo olha para dentro dela.

Com as sobrancelhas erguidas, minha mãe esfola a cabeça do cigarro no cinzeiro. Antes de se levantar e seguir sua vida, a mulher ainda dá mais uma espiada no horizonte do mundo, como quem diz: até o próximo.

2 Comentários

Arquivado em Repórter distraída

2 Respostas para “Minha mãe fuma

  1. Ivan

    Você fala sobre o cigarro de maneira poética. Por sua mãe fumar, você também aprendeu a fumar? Muitos filhos não gostam que os pais fumem, às vezes sentem até vergonha disso. Como você lidou com o vício da sua mãe na infância e adolescência?

    • Vanessa Bencz

      Ivan, por sorte ou cinismo eu nunca fumei. Apesar de ter assistido aos meus pais fumarem por tantos anos, eles sempre me falaram que aquilo não era bom e que eles queriam parar. Meu pai parou de fumar há 8 anos, mas minha mãe não consegue. Vejo isso com frustração e preocupação. Entendo que a geração passada não entendia os malefícios do cigarro, quase não tinham informações… mas, infelizmente, não consigo me sentir confortável quando vejo minha mãe rumando até a sacada para fumar.

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